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A CASA UNIVERSAL DE JUSTIÇA
BAHÁ'Í WORLD CENTRE
Janeiro de 1995
Às Assembléias Espirituais Nacionais Bahá'ís de todo o mundo
Queridos Amigos,
À medida que o século XX rapidamente se aproxima de seu final, há uma acentuada aceleração nos esforços de povos e governos para se alcançarem entendimentos comuns sobre assuntos que afetam o futuro da humanidade. A Conferência Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), no Rio de Janeiro; a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, em 1993, em Viena; a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, em 1994, na cidade do Cairo; e a Reunião de Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, a ser realizada em Copenhagen no mês de março próximo, seguida, em setembro, pela Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, em Pequim, são indicações flagrantes dessa aceleração. Esses eventos são os pontos culminantes de uma miríade de atividades que estão ocorrendo em diferentes partes do mundo, envolvendo uma ampla gama de organizações e redes não-governamentais (ONG's) numa busca urgente por valores, idéias e medidas práticas capazes de melhorar as perspectivas para o desenvolvimento pacífico de todos os povos. Nesse esforço conjunto, pode-se perceber o impulso emergente de uma crescente unidade de pensamento nos empreendimentos mundiais, cujo aparecimento é descrito pelas nossas Escrituras Sagradas como uma das luzes da unidade que irão iluminar o caminho para a paz. Os bahá’ís de todo o mundo sentem-se, naturalmente, encorajados por essas tendências auspiciosas e continuarão a dar-lhes crescente apoio moral e prático na medida em que as oportunidades o permitam.
Em vista da profunda atenção que está sendo dedicada às questões ligadas ao desenvolvimento sócioeconômico desde a ECO-92, no Brasil, solicitamos ao Escritório de Informação Pública da Comunidade Internacional Bahá’í a elaboração de uma declaração sobre o conceito de prosperidade global dentro do contexto dos Ensinamentos Bahá’is. Essa declaração está agora pronta para divulgação. Temos, portanto, o imenso prazer de vos enviar em anexo uma cópia de A Prosperidade da Humanidade e recomendar-vos seu uso quando vos envolverdes em atividades que vos permitam interagir com governos, organizações e povos de todas as partes. Nossa esperança é que esta declaração vos ajude a promover a compreensão deste importante tópico entre os membros de vossas comunidades, vitalizando assim a sua contribuição aos processos sociais construtivos em ação por todo o planeta.
Com amorosas saudações bahá'ís,
A Casa Universal de Justiça


A Prosperidade da Humanidade

EM UMA EXTENSÃO INIMAGINÁVEL HÁ UMA DÉCADA, o ideal da paz mundial está tomando forma e substância. Obstáculos ao caminho da humanidade, que há muito pareciam intransponíveis, desmoronaram; conflitos aparentemente irreconciliáveis começam a ceder lugar a processos de consulta e resolução; nasce uma disposição para fazer frente à agressão militar através da ação internacional unificada. O efeito disso tem sido fazer despertar, nas massas e em muitos líderes mundiais, um grau de esperança quanto ao futuro de nosso planeta que estava praticamente extinto.
Por todo o mundo, imensas energias intelectuais e espirituais estão buscando expressão; energias cuja concentração está em proporção direta às frustrações de décadas recentes. Por toda parte, multiplicam-se os sinais de que os povos da Terra anseiam pelo fim dos conflitos, do sofrimento e da ruina aos quais nenhum país está hoje imune. Esses impulsos emergentes por mudança devem ser aproveitados e canalizados a fim de serem superadas as barreiras remanescentes que bloqueiam a realização do antigo sonho de paz global. O esforço de vontade necessário a esta tarefa não pode ser evocado meramente por apelos à ação contra os incontáveis males que afligem a sociedade. Ele deve ser galvanizado por uma visão da prosperidade humana no mais pleno sentido da palavra – um despertar para as possibilidades de bem-estar espiritual e material, hoje ao nosso alcance. Seus beneficiários devem ser todos os habitantes do planeta, sem nenhuma distinção e sem que se imponham quaisquer condições dissociadas dos objetivos fundamentais de tal reorganização dos assuntos humanos.
A história, até os dias de hoje, registrou principalmente a experiência de tribos, culturas, classes e nações. Com a unificação física do planeta neste século e o reconhecimento da interdependência de todos os que nele vivem, a história da humanidade como um só povo está agora começando. O longo e vagaroso processo civilizatório do caráter humano desenvolveu-se de modo esporádico, desigual e reconhecidamente injusto quanto às vantagens materiais que proporcionava. Contudo, dotados da riqueza de toda a diversidade genética e cultural que evoluiu ao longo das eras passadas, os habitantes da Terra são hoje desafiados a recorrer à sua herança coletiva para assumir, de maneira consciente e sistemática, plena responsabilidade pelo traçado de seu futuro.
Não seria realístico imaginar que a visão do próximo estágio do avanço da civilização possa ser formulada sem um reexame minucioso das atitudes e premissas subjacentes às atuais abordagens do desenvolvimento sócioeconômico. No nível mais óbvio, essa reflexão terá de levar em conta questões práticas relacionadas à política, à utilização de recursos, às normas de planejamento, às metodologias de implementação e à organização. Mas, à medida que essa reflexão se aprofundar, rapidamente virão à tona questões fundamentais relacionadas com os objetivos de longo prazo que se têm em vista, as estruturas sociais exigidas, as implicações para o desenvolvimento de princípios de justiça social, bem como com a natureza e o papel do conhecimento na produção de mudanças duradouras. Na realidade, este reexame será orientado para a busca de um amplo entendimento consensual da própria natureza humana.
Dois caminhos de discussão abrem-se diretamente a todas essas questões, sejam conceituais ou práticas, e é ao longo desses dois caminhos que desejamos analisar, nas páginas seguintes, o tema de uma estratégia de desenvolvimento global. O primeiro caminho é a análise das crenças predominantes sobre a natureza e o propósito do processo de desenvolvimento; o segundo, os papéis nele atribuídos aos vários protagonistas.
As premissas que direcionam a maior parte do atual planejamento desenvolvimentista são essencialmente materialistas. Ou seja, o propósito do desenvolvimento é definido em termos do cultivo bem-sucedido, em todas as sociedades, daqueles meios para a conquista de prosperidade material que, através de tentativa e erro, veio a caracterizar certas regiões do globo. Modificações no discurso desenvolvimentista sem dúvida ocorrem, conciliando diferenças culturais e políticas e respondendo aos alarmantes perigos apresentados pela degradação do meio ambiente. Contudo, em sua essência, as premissas materialistas subjacentes permanecem inalteradas.
À medida que o século XX se aproxima de seu final, não é mais possível mantermos a crença de que essa abordagem do desenvolvimento sócioeconômico, nascida de uma concepção materialista da vida, seja capaz de atender às necessidades da espécie humana. As previsões otimistas sobre as mudanças que esse tipo de desenvolvimento iria gerar desvaneceram-se no abismo cada vez maior que separa os padrões de vida de uma minoria, pequena e relativamente decrescente, da pobreza experimentada pela vasta maioria da população do nosso planeta.
Esta crise econômica sem precedentes, juntamente com o colapso social que ela ajudou a gerar, reflete um profundo equívoco conceitual sobre a própria natureza humana. Pois os níveis de resposta evocados nos seres humanos pelos estímulos da ordem predominante não apenas são inadequados como também quase irrelevantes diante dos acontecimentos mundiais. Está demonstrado que, a menos que o desenvolvimento social encontre um propósito além da simples melhoria das condições materiais, ele fracassará em alcançar até mesmo essas metas. Tal propósito deve ser buscado nas dimensões espirituais da vida e na motivação que transcende um panorama econômico em constante mutação e a divisão artificial das sociedades humanas em desenvolvidas e subdesenvolvidas.
À medida que o propósito do desenvolvimento vai sendo redefinido, torna-se necessário lançarmos também um novo olhar às premissas sobre os papéis adequados a serem desempenhados pelos protagonistas do processo. O papel crucial do governo, em qualquer nível, não requer discussão. Contudo, as gerações futuras terão imensa dificuldade para compreender como foi possível que, numa época que rendia tributos a uma filosofia igualitária e a princípios democráticos, o planejamento desenvolvimentista visse as massas humanas como simples repositórios dos benefícios da ajuda e do treinamento. Embora reconhecendo a participação como um princípio, deixa-se para a grande maioria da população do mundo uma liberdade decisória que, no melhor dos casos, só envolve assuntos secundários e se limita a uma gama de escolhas formuladas por órgãos inacessíveis a esses povos e determinadas por objetivos freqüentemente irreconciliáveis com a sua percepção da realidade.
Essa abordagem é até mesmo endossada, implícita quando não explicitamente, pelas religiões estabelecidas. Onerado por tradições paternalistas, o pensamento religioso predominante parece ser incapaz de traduzir sua fé nas dimensões espirituais da natureza humana numa confiança na capacidade coletiva da humanidade para transcender as condições materiais.
Essa atitude perde de vista o significado daquele que talvez seja o mais importante fenômeno social dos nossos tempos. Se é verdade que os governos do mundo estão empenhados através do sistema da O.N.U. em construir uma nova ordem global, então é igualmente verdade que os povos do mundo estão galvanizados por essa mesma visão. A resposta dos povos do mundo assumiu a forma de um súbito desabrochar de incontáveis movimentos e organizações de mudança social aos níveis local, regional e internacional. Direitos humanos, progresso da mulher, requisitos sociais para um desenvolvimento econômico auto-sustentado, superação dos preconceitos, educação moral das crianças, alfabetização, cuidados básicos de saúde e uma infinidade de outras considerações vitais exigem a defesa urgente de organizações apoiadas por um número crescente de pessoas em todas as partes do globo.
Essa resposta dos povos do mundo às clamorosas necessidades da nossa época fazem eco ao apelo lançado por Bahá’u’lláh há mais de cem anos: Considerai ansiosamente as necessidades da época em que viveis e concentrai vossas deliberações sobre suas exigências e requisitos. A transformação do modo como muitas pessoas comuns estão começando a ver a si mesmas – mudança esta que, na perspectiva da história da civilização, é dramaticamente abrupta – levanta algumas questões fundamentais sobre o papel atribuído à humanidade em geral no planejamento do futuro do nosso planeta.


I
O ALICERCE DE UMA ESTRATÉGIA capaz de levar a população do mundo a assumir responsabilidade por seu destino coletivo deve ser a consciência da unidade da humanidade. Enganosamente simples no discurso popular, o conceito de que a humanidade constitui um único povo apresenta desafios fundamentais para o modo como a maioria das instituições da sociedade contemporânea cumpre suas funções. Quer sob a forma da estrutura antagonística dos governos civis, ou do princípio defensivo que rege grande parte do Direito Civil, ou da glorificação da luta de classes e entre outros grupos sociais, ou do espírito competitivo que domina uma parte tão grande da vida moderna, o conflito é aceito como a mola-mestra da interação humana. Ele representa, além disso, uma outra expressão, na organização social, da interpretação materialista da vida que se consolidou progressivamente no decorrer dos dois últimos séculos.
Em carta dirigida à rainha Vitória há mais de um século, e empregando uma analogia que aponta para o único modelo que contém uma promessa convincente para a organização de uma sociedade planetária, Bahá’u’lláh comparou o mundo ao corpo humano. Na verdade, no mundo dos fenômenos não existe outro modelo aceitável ao qual possamos olhar. A sociedade humana não é composta de uma massa de simples células diferenciadas e sim de associações de indivíduos, cada um dos quais dotado de inteligência e vontade; no entanto, os modos de funcionamento que caracterizam a natureza biológica do homem ilustram os princípios fundamentais da vida. O principal deles é o da unidade na diversidade. Paradoxalmente, é precisamente a totalidade e complexidade da ordem que constitui o corpo humano – e a perfeita integração das células do corpo a essa ordem – que permite a plena realização das capacidades distintivas inerentes a cada um desses elementos componentes. Nenhuma célula vive separada do corpo, seja contribuindo para o seu funcionamento, seja derivando sua parte do bem-estar do todo. O bem-estar físico assim alcançado encontra seu propósito quando torna possível a expressão da consciência humana; ou seja, o propósito do desenvolvimento biológico transcende a mera existência do corpo e de suas partes.
O que é verdadeiro para a vida do indivíduo encontra paralelos na sociedade humana. A espécie humana é um todo orgânico, o coroamento do processo evolucionário. O fato de a consciência humana necessariamente funcionar através de uma infinita diversidade de idéias e motivações individuais não nega, de modo algum, sua unidade essencial. Com efeito, é precisamente essa diversidade inerente que faz a distinção entre a unidade e a homogeneidade ou uniformidade. O que os povos do mundo estão hoje experimentando, afirmou Bahá’u’lláh, é a sua entrada coletiva na maioridade, e é através dessa emergente maturidade da raça humana que o princípio da unidade na diversidade irá encontrar sua plena expressão. A partir de seus primeiros passos no sentido da consolidação da vida familiar, o processo de organização social foi passando sucessivamente das estruturas simples do clã e da tribo, para múltiplas formas de sociedade urbana, chegando afinal à emergência do Estado Nacional – cada um desses estágios revelando uma riqueza de novas oportunidades para o exercício das aptidões humanas.
Está bem claro que o avanço da espécie não ocorreu às custas da individualidade humana. À medida que aumentava o nível de organização social, expandia-se, na mesma proporção, o campo de ação para a expressão das capacidades latentes em cada ser humano. Uma vez que as relações entre o indivíduo e a sociedade são recíprocas, a transformação que hoje se faz necessária deve ocorrer simultaneamente no interior da consciência humana e na estrutura das instituições sociais. É nas oportunidades oferecidas por essas duas facetas do processo de mudança que uma estratégia de desenvolvimento global irá encontrar seu propósito. Neste estágio crucial da história, tal propósito deve ser o de estabelecer alicerces duradouros sobre os quais uma civilização planetária possa gradualmente tomar forma.
Lançar os fundamentos básicos para uma civilização global exige a criação de leis e instituições que sejam universais tanto em seu caráter quanto em sua autoridade. Esse esforço só poderá começar depois que o conceito da unidade da humanidade tiver sido sinceramente apreendido por aqueles em cujas mãos repousa a responsabilidade pela tomada de decisões, e quando os princípios correlatos tiverem se propagado pelos sistemas educacionais e meios de comunicação de massa. Uma vez transposto esse limiar, um processo terá sido colocado em marcha através do qual os povos do mundo serão atraídos para a tarefa de formularem objetivos comuns e se comprometerem a alcançá-los. Por outro lado, somente uma reorientação tão fundamental poderá protegê-los dos antigos demônios da luta étnica e religiosa. Somente através do despertar da consciência de que constituem um único povo é que os habitantes deste planeta se tornarão capazes de se afastar dos padrões de conflito que no passado dominaram a organização social e começar a aprender os caminhos da colaboração e conciliação. O bem-estar da humanidade, escreve Bahá’u’lláh, e sua paz e segurança são inatingíveis a menos que e até que sua unidade seja firmemente estabelecida.

II
A JUSTIÇA É O ÚNICO PODER que pode traduzir a consciência emergente da unidade da raça humana em uma vontade coletiva através da qual as estruturas necessárias à vida comunitária global poderão ser erigidas com confiança. Uma época que vê os povos do mundo tendo acesso crescente a todos os tipos de informação e a uma diversidade de idéias irá descobrir que a justiça se afirma como o princípio governante da organização social bem-sucedida. Com uma freqüência cada vez maior, as propostas que visam ao desenvolvimento do planeta terão de submeter-se à luz imparcial dos padrões exigidos pela justiça.
Ao nível do indivíduo, a justiça é aquela faculdade da alma humana que torna cada pessoa capaz de distinguir entre a verdade e a falsidade. Aos olhos de Deus, assegura Bahá’u’lláh, a justiça é a mais amada de todas as coisas, pois permite que cada indivíduo veja com seus próprios olhos e não através dos olhos de outros, conheça através de seu próprio conhecimento e não por intermédio do conhecimento dos seus semelhantes ou do grupo. A justiça pede imparcialidade de julgamento e eqüidade no tratamento dispensado aos outros, sendo portanto uma companheira constante, ou mesmo uma exigência, na vida cotidiana.
A nível do grupo, o respeito à justiça é a bússola indispensável para a tomada coletiva de decisões, porque ela é o único meio pelo qual pode-se alcançar uma unidade de pensamento e ação. Longe de encorajar o espírito punitivo que com tanta freqüência mascarou-se sob seu nome em épocas passadas, a justiça é a expressão prática da percepção de que, na conquista do progresso humano, os interesses do indivíduo e os da sociedade estão inseparavelmente ligados. Na medida em que a justiça se torna uma consideração orientadora das interações humanas, encoraja-se um clima de consulta que permite o exame desapaixonado das opções e a escolha adequada dos cursos de ação. Numa atmosfera como essa, é bem menos provável que as eternas tendências à manipulação e ao sectarismo possam defletir o processo de tomada de decisões.
As implicações para o desenvolvimento sócioeconômico são profundas. Quanto à tarefa de definir o progresso, a consideração pela justiça protege-a das tentações de sacrificar o bem-estar da humanidade em geral – e até mesmo do próprio planeta – às vantagens que os avanços tecnológicos proporcionariam a minorias privilegiadas. Nos projetos e planejamentos, o respeito à justiça assegura que recursos limitados não serão desviados para concretizar projetos dissociados das prioridades sócioeconômicas essenciais de uma comunidade. Acima de tudo, somente os programas de desenvolvimento percebidos como capazes de atender as necessidades dos povos e dotados de um objetivo justo e eqüitativo podem esperar obter o compromisso das massas humanas de quem depende sua implementação. As qualidades humanas relevantes, tais como a honestidade, a disposição para o trabalho e o espírito de cooperação, são bem aproveitadas na realização das árduas metas coletivas quando todos os membros da sociedade – de fato, todos os grupos componentes da sociedade – podem confiar que estão protegidos por critérios claros e têm assegurados benefícios que se aplicam igualmente a todos.
Na raiz da discussão de uma estratégia de desenvolvimento sócioeconômico, portanto, está a questão dos direitos humanos. O delineamento dessa estratégia exige que a promoção dos direitos humanos seja libertada das amarras das falsas dicotomias que por tanto tempo a mantiveram como refém. A preocupação de que cada ser humano deve desfrutar uma liberdade de pensamento e ação conducente a seu crescimento pessoal não justifica a devoção ao culto do individualismo que tão profundamente corrompe muitas áreas da vida contemporânea. E tampouco a preocupação em assegurar o bem-estar da sociedade como um todo requer a deificação do Estado como a suposta fonte do bem-estar da humanidade. Longe disso: a história do nosso século mostra com toda clareza que essas ideologias e os programas sectários que delas se originaram têm sido,eles próprios, os principais inimigos dos interesses aos quais pretendem servir. Somente numa estrutura consultiva, possibilitada pela consciência da unidade orgânica da raça humana, podem todos os aspectos da preocupação pelos direitos humanos encontrar sua expressão legítima e criativa.
Nos dias de hoje, o órgão ao qual delegou-se a incumbência de criar essa estrutura e libertar a promoção dos direitos humanos daqueles que a explorariam é o sistema de instituições internacionais nascido das tragédias de duas ruinosas guerras mundiais e da experiência da crise econômica em todo o mundo. É bastante significativo que o termo direitos humanos tenha se tornado de uso geral somente após a promulgação da Carta das Nações Unidas, em 1945, e da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, três anos mais tarde. Nesses dois documentos históricos, reconheceu-se formalmente o respeito pela justiça social como um fator correlato ao estabelecimento da paz mundial. O fato de ter sido aprovada sem um único voto dissidente pela Assembléia Geral da O.N.U. conferiu à Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde seu nascimento, uma autoridade que foi crescendo firmemente nos anos subseqüentes.
A atividade mais intimamente ligada à consciência, a qual distingue a natureza humana, é a investigação individual da realidade. A liberdade de investigar o propósito da existência e desenvolver os atributos da natureza humana, que tornam esse propósito alcançável, precisa ser protegida. Os seres humanos precisam ser livres para conhecer. O fato de tal liberdade ser freqüentemente abusada e de tal abuso ser flagrantemente encorajado por certas características da sociedade contemporânea não diminuem, de modo algum, a validade do impulso em si.
É esse notável impulso da consciência humana que provê o imperativo moral para a enunciação de muitos dos direitos consagrados na Declaração Universal e nos Acordos correlatos. Educação universal, livre trânsito, acesso à informação e oportunidade de participar da vida política são todos aspectos de seu funcionamento que exigem garantias explícitas por parte da comunidade internacional. O mesmo é verdadeiro quanto à liberdade de pensamento e crença, incluída aí a liberdade religiosa, bem como o direito de ter opiniões e expressá-las adequadamente.
Uma vez que o conjunto da humanidade é uno e indivisível, cada membro da raça humana nasce neste mundo como um guardião do todo. Essa custódia constitui o fundamento moral da maioria dos outros direitos – principalmente os econômicos e sociais – que os instrumentos da O.N.U. também estão tentando definir. A segurança da família e do lar, o direito à propriedade e o direito à privacidade estão todos implícitos nessa custódia. As obrigações por parte da comunidade estendem-se à oferta de empregos, cuidados com a saúde mental e física, previdência social, salários justos, repouso e lazer, e a mais uma infinidade de outras expectativas razoáveis por parte dos membros individuais da sociedade.
O princípio da custódia coletiva também cria, para cada pessoa, o direito de esperar que as condições culturais essenciais à sua identidade tenham a proteção de leis nacionais e internacionais. À semelhança do papel desempenhado pelo pool genético na vida biológica da humanidade e de seu meio ambiente, a imensa riqueza de diversidade cultural conquistada ao longo de milhares de anos é vital para o desenvolvimento sócioeconômico de uma raça que experimenta sua entrada coletiva na maioridade. Essa diversidade cultural representa uma herança que deve ter a oportunidade de produzir seus frutos numa civilização global. Por um lado, é preciso proteger as expressões culturais contra o estrangulamento causado pelas influências materialistas que hoje predominam. Por outro, as culturas devem ser capazes de interagir umas com as outras dentro de padrões de civilização em constante mutação, livres de qualquer manipulação para fins políticos sectários.
A luz dos homens, declara Bahá’u’lláh, é a Justiça. Não a apagueis com os ventos adversos da opressão e da tirania. O propósito da Justiça é o surgimento da unidade entre os homens. O oceano da Divina Sabedoria encapela-se nesta palavra excelsa, embora os livros do mundo não possam conter Sua significação interior.


III
PARA QUE O CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS QUE HOJE ESTÁ SENDO FORMULADO pela comunidade das nações possa ser promovido e estabelecido sob a forma de normas internacionais eficazes, exige-se uma redefinição fundamental das relações humanas. As atuais concepções sobre o que é natural e apropriado nas relações – entre os próprios seres humanos, entre eles e a natureza, entre indivíduo e sociedade, entre os membros da sociedade e suas instituições – refletem níveis de compreensão que foram alcançados pela raça humana em estágios mais primitivos e menos maduros de seu desenvolvimento. Se a humanidade está realmente entrando na maioridade, se todos os habitantes do planeta constituem um único povo, se a justiça deve ser o princípio governante da organização social, então as concepções existentes, nascidas da ignorância dessas realidades emergentes, precisam ser repensadas.
O movimento nessa direção mal se iniciou. Ao desdobrar-se, ele levará a uma nova compreensão da natureza da família e dos direitos e responsabilidades de cada um de seus membros. Irá transformar por completo o papel da mulher em todos os níveis da sociedade. Seus efeitos, no sentido de reordenar a relação das pessoas com o trabalho a que se dedicam e sua compreensão do lugar que a atividade econômica ocupa em suas vidas, serão extraordinários. Ele ocasionará mudanças de longo alcance na governança dos assuntos humanos e nas instituições criadas para executá-la. Através de sua influência, a atividade das organizações não-governamentais, que proliferam com rapidez, será cada vez mais racionalizada. Ele irá assegurar a criação de uma legislação impositiva que protegerá tanto o meio ambiente quanto as necessidades de desenvolvimento de todos os povos. Finalmente, a reestruturação ou transformação do sistema da O.N.U., que esse movimento já está ocasionando, irá, sem dúvida alguma, levar ao estabelecimento de uma federação mundial de nações com seus próprios órgãos legislativo, judiciário e executivo.
Fundamental para a tarefa de reconceitualização do sistema de relações humanas é o processo a que Bahá’u’lláh se refere como consulta. Em todos os assuntos é necessário consultar, é Seu conselho. A maturidade do dom da compreensão manifesta-se através da consulta.
O padrão de busca da verdade exigido por esse processo está muito além dos atuais padrões de negociação e compromisso que, em geral, caracterizam a discussão dos assuntos humanos em nossa época. Esse padrão não pode ser alcançado – na realidade, sua consecução é severamente limitada – pela cultura de protesto que é outra característica dominante da sociedade contemporânea. A controvérsia, a propaganda, o método antagonístico, o inteiro aparato do partidarismo que há longo tempo caracterizam a ação coletiva são todos fundamentalmente prejudiciais ao seu propósito: isto é, chegar a um consenso sobre a verdade de uma dada situação e à escolha da ação mais sábia dentre as opções disponíveis num dado momento.
O que Bahá’u’lláh indica é um processo consultivo no qual os participantes se empenhem por transcender seus pontos de vista individuais, a fim de funcionarem como membros de um corpo com interesses e objetivos próprios. Em tal atmosfera, caracterizada por sinceridade e cortesia, as idéias não pertencem à pessoa a quem essas ocorrem durante a conversa e sim ao grupo como um todo, para que ele as aceite, rejeite ou revise, como melhor lhe parecer para servir ao objetivo em vista. A consulta tem sucesso na medida em que todos os participantes apoiam as decisões acordadas, independentemente das opiniões individuais que tinham ao iniciarem os trabalhos. Sob tais circunstâncias, uma decisão anterior pode ser reconsiderada prontamente se a experiência demonstrar quaisquer limitações.
Vista sob essa luz, a consulta é a expressão operacional da justiça nos assuntos humanos. A consulta é tão vital para o sucesso do esforço coletivo que deve tornar-se uma das características básicas de toda estratégia viável de desenvolvimento sócioeconômico. Com efeito, a participação das pessoas, de cujo compromisso e empenho depende o sucesso dessa estratégia, só se torna eficaz quando fazemos da consulta o princípio organizador de todo projeto. Homem algum pode alcançar sua verdadeira posição, é o conselho de Bahá’u’lláh, exceto através de sua justiça. Nenhum poder existe a não ser através da unidade. Nenhum conforto e bem-estar podem ser alcançados salvo através da consulta.

IV
AS TAREFAS VINCULADAS AO DESENVOLVIMENTO DE UMA SOCIEDADE GLOBAL requerem níveis de capacidade muito além de tudo o que a raça humana foi capaz de aglutinar até os dias de hoje. Alcançar tais níveis irá exigir uma enorme expansão do acesso ao conhecimento, tanto por parte dos indivíduos quanto das organizações sociais. A educação universal será um fator indispensável para esse processo de capacitação, mas o esforço só terá sucesso quando os assuntos humanos forem reorganizados de modo a permitir que indivíduos e grupos, de todos os setores da sociedade, adquiram conhecimento e o apliquem na orientação dos assuntos humanos.
Ao longo da história registrada, a consciência humana sempre dependeu de dois sistemas básicos de conhecimento, através dos quais suas potencialidades foram se expressando progressivamente: a ciência e a religião. Através dessas duas forças, a experiência da raça humana foi organizada, seu meio ambiente interpretado, explorados seus poderes latentes e disciplinada sua vida moral e intelectual. A religião e a ciência agiram como as verdadeiras progenitoras da civilização. Além disso, ao nosso olhar retrospectivo, torna-se evidente que a eficácia dessa estrutura dualista foi maior durante os períodos em que a religião e a ciência, cada qual em sua esfera, foram capazes de trabalhar em harmonia.
Tendo em vista o respeito quase universal de que hoje desfruta a ciência, não precisamos analisar suas credenciais. No contexto de uma estratégia de desenvolvimento sócioeconômico, porém, a questão que se apresenta é como a atividade científica e tecnológica deve ser organizada. Se o trabalho envolvido tiver como meta principal a manutenção das elites estabelecidas num pequeno número de nações, está mais do que evidente que a imensa brecha já criada entre os ricos e pobres do mundo irá apenas continuar a se ampliar, com as desastrosas conseqüências, já mencionadas, para a economia mundial. De fato, se a maior parte da humanidade continuar a ser considerada como meros usuários dos produtos da ciência e tecnologia criados em outros países, então os programas ostensivamente destinados a atender suas necessidades não poderão ser chamados de desenvolvimento.
Portanto, um desafio fundamental – e imenso – é a expansão da atividade científica e tecnológica. Esses poderosos instrumentos de mudança social e econômica devem deixar de ser patrimônio de segmentos privilegiados da sociedade, passando a ser organizados de modo a permitir que os povos de todo o mundo participem dessa atividade de acordo com sua capacidade. Além da criação de programas que coloquem a educação necessária ao alcance de todos aqueles que são capazes de usufruir seus benefícios, essa reorganização requererá o estabelecimento de centros viáveis de aprendizado em todo o mundo, instituições que irão amplificar a capacidade dos povos do mundo para participar da geração e aplicação do conhecimento. A estratégia desenvolvimentista, embora reconhecendo as amplas diferenças na capacidade individual, deve assumir como um de seus objetivos principais a tarefa de tornar possível a todos os habitantes da Terra aproximar-se em pé de igualdade dos processos de ciência e tecnologia que lhes pertencem por direito de nascença. Os conhecidos argumentos a favor da manutenção do status quo perdem força a cada dia que passa, na medida em que a revolução acelerada nas tecnologias de comunicação coloca a informação e a educação ao alcance de um vasto número de pessoas em todo o mundo – onde quer que elas estejam e qualquer que seja seu ambiente cultural.
Os desafios que se apresentam à humanidade em sua vida religiosa, se diferentes em caráter, são igualmente assustadores. Para a imensa maioria da população do mundo, a idéia de que a natureza humana tem uma dimensão espiritual – ou seja, que sua identidade fundamental é espiritual – é uma verdade que não requer demonstração. Esta é uma percepção da realidade que pode ser encontrada nos mais antigos registros da civilização e que tem sido cultivada há milênios por todas as grandes tradições religiosas do passado da humanidade. Suas conquistas duradouras no campo das leis, nas belas-artes e no processo civilizatório das relações humanas são o que dá substância e significado à história. De uma forma ou de outra, seus estímulos exercem uma influência cotidiana na vida da maioria dos povos da Terra e, como mostram dramaticamente os acontecimentos mundiais dos nossos dias, os anseios despertados por ela são inextinguíveis e de uma potência incalculável.
Parece evidente, portanto, que todos os tipos de esforços para promover o progresso humano devem tentar acessar essas capacidades tão universais e tão imensamente criativas. Mas então, por que as questões espirituais que se apresentam à humanidade não estão no âmago do discurso desenvolvimentista? Por que a maioria das prioridades – com efeito, a maioria das premissas subjacentes – dos programas internacionais de desenvolvimento é até hoje determinada por cosmovisões materialistas com as quais apenas pequenas minorias da população da Terra concordam? Que valor se pode atribuir a uma professada devoção ao princípio da participação universal que nega a validade da experiência cultural significativa dos participantes?
Pode-se argumentar que, estando os assuntos espirituais e morais historicamente ligados a doutrinas teológicas rivais que não são suscetíveis de prova objetiva, tais assuntos ficam fora do arcabouço das considerações desenvolvimentistas da comunidade internacional; dar-lhes qualquer papel significativo significaria abrir as portas exatamente para aquelas influências dogmáticas que nutriram o conflito social e bloquearam o progresso humano. Não há dúvida de que há um certo grau de verdade nesse argumento. Os expoentes dos vários sistemas teológicos mundiais têm uma pesada responsabilidade não só pelo descrédito em que caiu a fé entre muitos pensadores progressistas como também pelas inibições e distorções produzidas no contínuo discurso da humanidade sobre o sentido espiritual. No entanto, concluir que a resposta está em desencorajar a investigação da realidade espiritual e ignorar as raízes mais profundas da motivação humana é uma ilusão manifesta. O único efeito, no nível alcançado por essa censura na história recente, foi o de entregar o traçado do futuro da humanidade às mãos de uma nova ortodoxia que argumenta ser a verdade amoral e os fatos independentes dos valores.
Com relação à existência terrena, muitas das grandes conquistas da religião foram de caráter moral. Através de seus ensinamentos e dos exemplos de vidas humanas por eles iluminadas, povos de todas as épocas e regiões desenvolveram a capacidade de amar. Aprenderam a disciplinar o lado animal de suas naturezas, a fazer grandes sacrifícios pelo bem comum, a praticar o perdão, a generosidade e a confiança e a usar a riqueza e outros recursos de maneiras propícias ao avanço da civilização. Delinearam-se sistemas institucionais para traduzir esses avanços morais em normas gerais de vida social. Embora obscurecidos por acréscimos dogmáticos e desviados por conflitos sectários, os impulsos espirituais postos em movimento por figuras transcendentes como Krishna, Moisés, Buda, Zoroastro, Jesus e Maomé foram a principal influência no processo civilizatório do caráter humano.
Uma vez que o desafio é potencializar a humanidade através de uma imensa expansão do acesso ao conhecimento, a estratégia que pode tornar isso possível deve ser construída em torno de um diálogo contínuo e intenso entre a ciência e a religião. É um truísmo – ou, pelo menos, deveria ser nos dias de hoje – que em todas as esferas e em todos os níveis da atividade humana os insights e habilidades representativos da conquista científica deveriam buscar a força do compromisso espiritual e do princípio moral para assegurar sua correta aplicação. Por exemplo, os povos precisam aprender a separar o fato da conjectura – na verdade, distinguir entre a opinião subjetiva e a realidade objetiva; contudo, a medida até a qual indivíduos e instituições assim equipados podem contribuir para o progresso humano será determinada por sua devoção à verdade e seu desapego aos impulsos de seus próprios interesses e paixões. Uma outra capacidade que a ciência deve cultivar em todos os povos é a de pensar em termos de processo, incluindo-se aí o processo histórico; no entanto, se queremos que esse avanço intelectual venha a contribuir definitivamente para a promoção do desenvolvimento, sua perspectiva não pode ser obscurecida por preconceitos de raça, cultura, sexo ou crença sectária. Similarmente, o treinamento que possibilita aos habitantes da Terra participarem da produção de riquezas só irá promover as metas de desenvolvimento na medida em que tal impulso for iluminado pelo insight espiritual de que o serviço à humanidade é o propósito tanto da vida individual quanto da organização social.

V
É NO CONTEXTO DE UMA ELEVAÇÃO DO PATAMAR DA CAPACIDADE HUMANA através da expansão do conhecimento, em todos os níveis, que as questões econômicas enfrentadas pela humanidade devem ser analisadas. Como demonstrou a experiência de décadas recentes, os esforços e benefícios materiais não podem ser vistos como fins em si mesmos. Seu valor está não apenas em atender às necessidades básicas da humanidade por moradia, alimento, cuidados de saúde e similares, como também em ampliar o alcance das capacidades humanas. O papel mais importante que os esforços econômicos devem desempenhar no desenvolvimento consiste, portanto, em proporcionar aos povos e às instituições meios através dos quais possam alcançar o real propósito do desenvolvimento: lançar os alicerces para uma nova ordem social capaz de cultivar as potencialidades ilimitadas latentes na consciência humana.
O desafio ao pensamento econômico é aceitar sem quaisquer ambigüidades este propósito do desenvolvimento – bem como seu próprio papel no processo de se criarem meios para alcançá-lo. Só assim podem a economia e as ciências correlatas libertarem-se da contracorrente das preocupações materialistas que hoje as perturbam e cumprir seu potencial de instrumentos vitais para a conquista do bem-estar humano no mais pleno sentido da palavra. Em lugar nenhum a necessidade de um rigoroso diálogo entre o trabalho da ciência e os insights da religião é mais evidente.
O problema da pobreza é um caso típico. As propostas visando discutir a pobreza baseiam-se na convicção de que os recursos materiais existem ou podem ser criados pelo esforço científico e tecnológico, o que viria aliviar e finalmente erradicar por completo essa antiga condição como uma característica da vida humana. Uma das principais razões pelas quais nunca se alcança este alívio é que os avanços científicos e tecnológicos necessários respondem a uma série de prioridades só tangencialmente relacionadas com os verdadeiros interesses da humanidade em geral. Será necessário um reordenamento radical dessas prioridades se quisermos finalmente livrar o mundo do fardo da pobreza. Tal conquista requer uma busca determinada pelos valores apropriados, uma busca que irá testar profundamente os recursos espirituais e científicos da humanidade. A religião terá sérias dificuldades em contribuir para esse empreendimento conjunto enquanto se mantiver aprisionada por doutrinas sectárias que não conseguem distinguir entre contentamento e mera passividade, e ensinam que a pobreza é uma característica inerente à vida terrena, da qual só se escapa no mundo vindouro. Para participar eficazmente da luta por trazer bem-estar material à humanidade, o espírito religioso precisa encontrar – na Fonte de inspiração da qual ele flui – novos conceitos e princípios espirituais relevantes a uma época que busca estabelecer a unidade e a justiça nos assuntos humanos.
O desemprego suscita questões similares. Na maior parte do pensamento contemporâneo, o conceito de trabalho costuma ser reduzido à idéia de um emprego remunerado que proporcione ao indivíduo os meios para consumir os bens disponíveis. O sistema é circular: poder de compra e consumo resultam na manutenção e expansão da produção de bens e, em conseqüência, sustentam o emprego remunerado. Tomadas individualmente, todas essas atividades são essenciais para o bem-estar da sociedade. No entanto, a inadequação do conceito geral pode ser comprovada tanto na apatia que os cientistas sociais discernem entre as imensas massas assalariadas de todos os países, quanto na desmoralização dos crescentes exércitos de desempregados.
Não causa surpresa, portanto, existir um reconhecimento crescente de que o mundo precisa com urgência de uma nova ética do trabalho. Aqui também, nada menos que insights gerados pela interação criativa dos sistemas científicos e religiosos de conhecimento poderão produzir uma reorientação fundamental dos hábitos e atitudes. Diferentemente dos animais, que dependem para seu sustento daquilo que o meio ambiente possa proporcionar-lhes de imediato, os seres humanos são impelidos a expressar as imensas capacidades latentes dentro de si através do trabalho produtivo destinado a satisfazer tanto as suas próprias necessidades quanto as dos outros. Ao agirem assim, eles se tornam participantes, por modesta que seja sua contribuição, dos processos de avanço da civilização. Cumprem propósitos que os unem aos outros. Na medida em que o trabalho é conscientemente assumido num espírito de serviço à humanidade, afirma Bahá’u’lláh, ele é uma forma de prece, um meio de adoração a Deus. Todo indivíduo tem a capacidade de ver a si próprio sob essa luz, e é a essa inalienável capacidade do eu que a estratégia de desenvolvimento deve fazer apelo, qualquer que seja a natureza dos planos em vista, quaisquer que sejam os benefícios por eles prometidos. Nada que seja menor do que essa perspectiva jamais poderá exigir dos povos do mundo a magnitude de esforço e comprometimento que as tarefas econômicas do futuro irão exigir.
Um desafio de natureza similar apresenta-se ao pensamento econômico como resultado da crise ambiental. As falácias das teorias baseadas na crença de que não há limites à capacidade da natureza em atender a todas as exigências humanas, estão agora sendo friamente expostas. Uma cultura que confere valor absoluto à expansão, ao consumo e à satisfação dos desejos pessoais está sendo compelida a reconhecer que tais objetivos não são, por si sós, guias realísticos para a política. Inadequadas, também, são as abordagens dos assuntos econômicos cujas ferramentas decisórias não conseguem lidar com o fato de que a maior parte dos principais desafios tem um alcance global e não particular.
A ardente esperança de que essa crise moral possa de algum modo ser enfrentada pelo endeusamento da própria natureza é uma evidência do desespero espiritual e intelectual por ela gerado. O reconhecimento de que a criação é um todo orgânico e de que a humanidade tem a responsabilidade de cuidar desse todo e acolhê-lo tal como ele é, não representa uma influência que possa, por si só, estabelecer na consciência dos povos um novo sistema de valores. Somente um novo avanço na compreensão, que seja científico e espiritual no mais pleno sentido dessas palavras, irá capacitar a raça humana a assumir a custódia em direção à qual a história a impele.
Todos os povos, por exemplo, mais cedo ou mais tarde, precisarão recuperar a capacidade para o contentamento, a alegria da disciplina moral e a devoção ao dever que até época relativamente recente eram considerados aspectos essenciais do ser humano. Repetidamente através da história, os ensinamentos dos Fundadores das grandes religiões têm sido capazes de instilar estas qualidades de caráter nos povos que a eles responderam. Estas qualidades tornaram-se ainda mais vitais nos dias de hoje, mas sua expressão deve agora assumir uma forma consistente com a entrada da raça humana na maioridade. Aqui, novamente, o desafio da religião é libertar-se das obsessões do passado: contentamento não é fatalismo; moralidade nada tem em comum com o puritanismo negador da vida que tão freqüentemente pretendeu falar em seu nome; e uma genuína devoção ao dever não traz um sentimento de superioridade e sim a auto-estima.
O efeito da persistente negação às mulheres de uma plena igualdade com os homens aguça ainda mais o desafio à ciência e religião na vida econômica da humanidade. Para qualquer observador objetivo, o princípio da igualdade entre os sexos é fundamental para todo pensamento realístico sobre o bem-estar futuro da Terra e de seus povos. Ele representa uma verdade sobre a natureza humana que tem aguardado longamente por reconhecimento através das eras da infância e adolescência da humanidade. As mulheres e os homens, é a enfática afirmação de Bahá’u’lláh, sempre foram e sempre serão iguais aos olhos de Deus. A alma racional não tem sexo e quaisquer que tenham sido as desigualdades sociais ditadas pelas exigências da sobrevivência no passado, está claro que elas não podem ser justificadas nesta época em que a raça humana se encontra no limiar da maturidade. Um compromisso com o estabelecimento da plena igualdade entre homens e mulheres, em todos os setores da vida e em todos os níveis da sociedade, será fundamental para o sucesso dos esforços por se conceber e implementar uma estratégia de desenvolvimento global.
De fato, num sentido importante, o progresso nessa área será uma medida do sucesso de qualquer programa de desenvolvimento. Dado o papel vital da atividade econômica no avanço da civilização, uma evidência visível do ritmo no qual o desenvolvimento está progredindo será a extensão até a qual as mulheres ganhem acesso a todas as vias do esforço econômico. O desafio vai além de assegurar uma distribuição equitativa de oportunidades, por mais importante que seja esse aspecto. Ele pede uma reflexão fundamental sobre os assuntos econômicos, de maneira a atrair a plena participação de uma gama de experiências e insights humanos até agora amplamente excluídos do discurso. Os clássicos modelos econômicos de mercados impessoais nos quais os seres humanos agem como autônomos que fazem escolhas egoístas não servirão às necessidades de um mundo motivado por ideais de unidade e justiça. A sociedade irá encontrar-se crescentemente desafiada a desenvolver novos modelos econômicos delineados por insights nascidos de uma compreensão solidária de experiências compartilhadas, da visão dos seres humanos em relação uns aos outros e do reconhecimento da centralidade do papel da família e da comunidade para o bem-estar social. Este avanço intelectual – cujo foco é fortemente altruísta e não mais autocentrado – deverá exercer uma forte atração sobre a sensibilidade espiritual e científica da raça humana; milênios de experiência prepararam as mulheres para dar uma contribuição crucial ao esforço comum.


VI
PRETENDER UMA TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE NESSA ESCALA, significa levantar tanto a questão do poder que seria utilizado para realizá-la quanto a questão, inseparavelmente ligada à primeira, da autoridade para exercer esse poder. Assim como ocorre com todas as outras implicações da integração acelerada do planeta e seus povos, esses dois termos familiares permanecem em urgente necessidade de uma redefinição.
Ao longo da história – e apesar das afirmações em contrário, de inspiração teológica ou ideológica –, o poder geralmente foi interpretado como uma vantagem desfrutada por pessoas ou grupos. Na verdade, com muita freqüência ele foi expresso simplesmente em termos de meios a serem empregados contra outros. Essa interpretação do poder tornou-se um aspecto inerente à cultura de divisão e conflito que tem caracterizado a raça humana no decorrer dos últimos milênios, independentemente das orientações sociais, religiosas ou políticas que predominaram em cada época nas diversas partes do mundo. De um modo geral, o poder tem sido um atributo de indivíduos, facções, povos, classes e nações. Um atributo especialmente associado aos homens, e não às mulheres. Seu principal efeito tem sido o de conferir a seus beneficiários a capacidade de adquirir, superar, dominar, resistir, vencer.
Os processos históricos resultantes foram responsáveis tanto pelos ruinosos retrocessos do bem-estar humano quanto pelos extraordinários avanços da civilização. Apreciar os benefícios significa reconhecer também os retrocessos, bem como as claras limitações dos padrões de comportamento produzidos por ambos. Hábitos e atitudes relacionados ao uso do poder, que emergiram durante as longas eras da infância e adolescência da humanidade, alcançaram os limites externos de sua eficácia. Hoje, em uma era em que a maioria dos problemas prementes são de natureza global, persistir na crença de que o poder significa vantagem para vários segmentos da família humana é algo profundamente equivocado a nível teórico e sem nenhum valor prático ao desenvolvimento sócioeconômico do planeta. Aqueles que ainda aderem a essa idéia – e que, em épocas anteriores, possam nela ter sentido confiança – agora encontram seus planos enredados em inexplicáveis frustrações e dificuldades. Em sua expressão tradicional e competitiva, o poder é tão irrelevante às necessidades da humanidade futura quanto o seriam as tecnologias de transporte ferroviário à tarefa de se colocar em órbita, ao redor da Terra, satélites espaciais.
A analogia é bastante adequada. A raça humana está sendo pressionada pelas exigências de sua própria maturação a libertar-se das idéias herdadas sobre o quê é o poder e como usá-lo. Que ela tem condições de fazê-lo, está demonstrado pelo fato de que, embora dominada pela concepção tradicional, a humanidade sempre foi capaz de conceber o poder sob outras formas vitais às suas esperanças. A história oferece amplas evidências de que ao longo dos tempos, mesmo que de modo intermitente e inepto, povos de todas as origens buscaram dentro de si mesmos uma vasta gama de recursos criativos. O exemplo mais evidente talvez seja o do poder da verdade, um agente de mudança associado a alguns dos maiores avanços na experiência filosófica, religiosa, artística e científica da raça humana. A força de caráter representa um outro meio de se mobilizar imensa resposta humana, assim como o faz a influência do exemplo, seja na vida do indivíduo ou das sociedades humanas. Quase totalmente despercebida é a magnitude da força que será gerada pela conquista da unidade, uma influência tão poderosa, nas palavras de Bahá’u’lláh, que pode iluminar toda a Terra.
As instituições da sociedade terão sucesso em trazer à luz e direcionar as potencialidades latentes na consciência dos povos do mundo na medida em que o exercício da autoridade for governado por princípios harmonizados com a evolução dos interesses de uma raça humana em rápido amadurecimento. Tais princípios incluem a obrigação daqueles em posição de autoridade de conquistar a confiança, o respeito e o apoio genuíno daqueles cujas ações eles buscam governar; consultar, abertamente e na maior medida possível, com todos aqueles cujos interesses são afetados pelas decisões em pauta; avaliar, de modo objetivo, tanto as reais necessidades quanto as aspirações das comunidades a quem servem; aproveitar os avanços científicos e morais para fazer uso adequado dos recursos da comunidade, incluindo a energia de seus membros. Nenhum princípio de autoridade efetiva é tão importante quanto dar prioridade à construção e manutenção da unidade entre os membros de uma sociedade e os membros de suas instituições administrativas. Já fizemos referência ao tema, intimamente associado a este, do compromisso com a busca da justiça em todos os assuntos.
É claro que estes princípios só funcionarão dentro de uma cultura que seja essencialmente democrática em espírito e método. Isto, no entanto, não significa endossar a ideologia de partidarismo que ousadamente assumiu em toda as partes do mundo o nome de democracia e que, apesar de impressionantes contribuições ao progresso humano no passado, hoje se encontra atolada no cinismo, na apatia e na corrupção aos quais ela própria deu origem. Ao selecionar aqueles que irão tomar decisões coletivas em seu favor, a sociedade não necessita, nem é bem servida, pelo teatro político de nomeações, candidaturas, campanhas eleitorais e solicitação de votos. Existe dentro de todos os povos, na medida em que se tornam progressivamente educados e convencidos de que os programas propostos servem aos seus reais interesses de desenvolvimento, a capacidade de adotar procedimentos eleitorais que irão, gradualmente, aprimorar a seleção de seus órgãos decisórios.
À medida que a integração da humanidade ganhar ímpeto, as pessoas assim selecionadas precisarão, cada vez mais, ver todos os seus esforços dentro de uma perspectiva global. Não somente a nível nacional como também a nível local, aqueles eleitos para governar os assuntos humanos deverão, na visão de Bahá’u’lláh, considerar a si mesmos como responsáveis pelo bem-estar de toda a humanidade.


VII
A TAREFA DE CRIAR UMA ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO GLOBAL que acelere a entrada da raça humana na maioridade constitui-se no desafio de se reformular, fundamentalmente, todas as instituições da sociedade. Os protagonistas a quem esse desafio se apresenta são todos os habitantes do planeta: a humanidade em geral, os membros das instituições governantes em todos os níveis, aqueles que trabalham em órgãos de coordenação internacional, os cientistas e pensadores sociais, todas as pessoas dotadas de talentos artísticos ou com acesso aos meios de comunicação, e os líderes das organizações não-governamentais. A resposta requerida deve basear-se no reconhecimento incondicional da unidade da humanidade, no compromisso de se estabelecer a justiça como o princípio organizador da sociedade, e na determinação de se explorar, ao máximo, as possibilidades que um diálogo sistemático, entre os talentos científico e religioso da raça, pode oferecer à edificação da capacidade humana. Este empreendimento requer uma reconsideração radical sobre a maioria dos conceitos e premissas que hoje governam a vida social e econômica. Deve, também, estar conjugado à convicção de que, por longo que seja o processo e quaisquer que venham a ser os retrocessos encontrados, a governança dos assuntos humanos pode ser conduzida ao longo de linhas que sirvam às reais necessidades da humanidade.
Somente se a infância coletiva da humanidade tiver realmente chegado ao fim e estiver raiando a era de sua maioridade, é que esta perspectiva poderá representar mais do que uma simples miragem utópica. Imaginar que um esforço da magnitude aqui visionada possa ser organizado por povos e nações desesperançados e mutuamente antagônicos é contrário a toda a sabedoria herdada pelo homem. Somente se o curso da evolução social tiver alcançado um daqueles pontos decisivos de mutação, como Bahá’u’lláh afirma ser o caso, por meio dos quais todos os fenômenos da existência são impelidos subitamente em direção a novos estágios de seu desenvolvimento, é que tal possibilidade poderá ser concebida. O que inspirou as visões expostas nesse documento é uma profunda convicção de que justamente esta grandiosa transformação na consciência humana está em marcha. A todos aqueles que nela reconhecem impulsos familiares, provenientes de seus próprios corações, as palavras de Bahá’u’lláh trazem a certeza de que Deus, nesse Dia sem igual, dotou a humanidade com recursos espirituais plenamente à altura deste desafio:
Ó vós que habitais os céus e a terra! Apareceu o que nunca antes aparecera.
Este é o Dia no qual os mais excelentes favores de Deus manaram sobre os homens, o Dia no qual Sua graça suprema se infundiu em todas as coisas criadas.
O tumulto que hoje convulsiona os assuntos humanos é sem precedentes, e muitas de suas conseqüências enormemente destrutivas. Perigos nunca antes imaginados em toda a história reunem-se à volta de uma humanidade aturdida. O maior erro que as lideranças mundiais poderiam cometer nessa conjuntura, no entanto, seria permitir que essa crise lance dúvidas sobre o resultado final do processo que hoje está em andamento. Um mundo está chegando ao seu término e um novo luta para nascer. Os hábitos, atitudes e instituições acumulados ao longo dos séculos estão sendo submetidos a testes que são tão necessários ao desenvolvimento humano quanto inescapáveis. O que é exigido dos povos do mundo é uma medida de fé e resolução para estarem à altura das imensas energias com as quais o Criador de todas as coisas dotou esta primavera espiritual da raça humana. Sêde unidos em conselho, é o apelo de Bahá’u’lláh,
sêde um só em pensamento. Que cada manhã seja melhor do que sua véspera e cada novo dia mais rico que o dia anterior. O mérito do homem repousa no serviço e na virtude e não na ostentação de riqueza e bens. Atentai para que vossas palavras estejam livres de vãs fantasias e desejos mundanos, e vossos atos purificados de malícia e suspeita. Não dissipeis o tesouro de vossas vidas preciosas na busca de afeições más e corruptas, nem despendais vossos esforços na promoção de vossos interesses pessoais. Sêde generosos em vossos dias de abundância, e pacientes nas horas de perda. A adversidade é seguida pelo sucesso e a alegria sucede ao pesar. Guardai-vos contra a ociosidade e a indolência, e aderi àquilo que possa trazer benefício aos homens, sejam jovens ou idosos, eminentes ou humildes. Cuidai para não semeardes o joio da dissensão entre os homens, nem plantardes os espinhos da dúvida em corações puros e radiantes.



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